quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CAMINHAR, UMA FILOSOFIA

Frederic Gros
Editora: É realizações
Título original francês: Marcher, une Philosophie
Edição: 2010

Sinopse:

Sucesso editorial na França, previsto para sair no Brasil em 2011, livro de Fréderic Gros fala do ato de caminhar como quem trata de filosofia

Escolham as dores que preferem: o corpo encapsulado no carro durante um engarrafamento gigante ou o res­mungo dos músculos depois de uma longa caminhada? A coluna mastigada por horas diante de uma tela ou a dormência da lombar impactada por pés que foram longe? A saturação mental pelo cotidiano de informações ou o leve zunido da cabeça que pensou livremente o dia inteiro?

Frédéric Gros não esconde sua preferência pela fadiga preciosa, a que advém de um grato esforço. Filósofo, ele também caminha. “Duas coisas que detesto”, protestariam de chofre a síndrome de adolescente e o pragmatismo mercantil, monarcas absolutos da plasta época em que vivemos. No entanto, eu aposto: de sedentários barrigudos a ratos de biblioteca, poucos resistirão à prosa de Gros.

Na França, a obra foi acolhida com entusiasmo por sua escrita “soberana, límpida, exata” (Le Monde), além de “ritmada e enérgica” (Les Echos). Um “livro inclassificável” (L’Express), de “profunda simplicidade” (Le Figaro). Um convite a “itinerários a um só tempo universais e singulares”(L’Humanité). O sucesso foi também de público: a edição de bolso será lançada em breve.

Ora, intelectos refinados raramente produzem textos tão cativantes. Grande conhecedor e editor da obra de Michel Foucault, professor de filosofia da Universidade de Paris XII, o jovem Frédéric Gros já acumula notável produção acadêmica, na qual se destaca um ensaio magistral sobre a guerra (États de Violence, Paris: Gallimard, 2006). Contudo, em entrevista ao Philosophie Magazine (agosto de 2009), o autor explica que o elementar sobre a caminhada encontra-se fora do discurso filosófico universitário: “É que ela fala primeiro àquele que a pratica”.

Sim, o texto de Gros nos atinge fisicamente. Mas não entendam mal a sua faceta aeróbica. Não se trata de um guia para atletas ou peregrinos – aliás, o autor desconfia dos guias. A primeira frase esclarece que caminhar não é um esporte, pois prescinde de técnica, escore ou competição. Longe das grandes cerimônias da mídia, a caminhada é mera repetição de um gesto infantil: um pé diante do outro. Nas longas marchas, aliás, em radical oposição ao ritmo de vida contemporâneo, o maior sinal de segurança é a lentidão. A velocidade é uma perda de tempo. Sei que chegarei ao final, portanto, desfruto, não preciso correr. O estirar do tempo aprofunda o espaço.

Então, de que trata o livro? Penso, logo... caminho? Ou vice-versa? O certo é que aqui a filosofia não é vã: é um grande vão – como verbo conjugado (incitação a ir) e como substantivo (espaço que atrai). Gros segue, entre outros, os passos de Nietzsche: lágrimas de felicidade ao caminhar longamente, nada sentimentais, mas que marcam seu “privilégio sobre os homens de hoje”. De Rimbaud, para quem o aqui era insuportável, por isto a fuga obstinada e enraivecida, a morte de passagem por Marselha.

De Thoreau, em busca do primitivo, não por ser antigo, mas porque ali ainda vibram as forças de nosso futuro. Na trilha da filosofia, faz-se uma filosofia da trilha; Rousseau, Nerval e Gandhi ladeiam andarilhos anônimos.

Sem cacoetes de biógrafo ou resquícios de arrogância, o autor trança, mas não as pernas. Não é um “livro obeso”, embuchado de bibliotecas, “envenenado pelas morais sedentárias”. Os capítulos são curtos, plenos de frescor. Abordam o silêncio – no ruído da natureza, dissipa-se nossa linguagem funcional. E a solidão: se a tropa for grande, caminhar pode tornar-se um inferno, “a sociedade transportada para a montanha”.

Só, ou em solidão compartilhada, caminhar despoja. O que parecia imprescindível mostra-se um peso, porque as ofertas em profusão (bens, transportes, redes) e as facilidades (comunicar-se, comprar, circular) geram dependências que nos aprisionam. Logo, aparentes privações convertem-se em pequenas libertações. A infusão do corpo em sabores, cheiros e cores permite “possuir sem os inconvenientes da propriedade”. Restam os da incerteza. Mas quando há chuva, frio ou calor inclementes, exaustão ou percalços, a alma encoraja o corpo e se orgulha dele. “Nada do seu saber, de suas leituras, de suas relações servirá aqui: duas pernas bastam, e grandes olhos para ver”, escreve Gros.

Caminhar também põe em xeque o abismo entre fora e dentro. Lá fora significa quase sempre uma transição entre interiores: o brincar das crianças, o sair dos adultos, o caminho entre trabalho e casa, a higiene mental de Kant ou a pausa para arejar. Entretanto, na caminhada, o fora é estável, é lá mesmo. A constância do passo permite habitar uma paisagem, impregnar-se dela. Em lugar do acúmulo de imagens fugazes, pequenas doses de presença.

A propósito, em palestra sobre o livro (disponível no site
www.laprocure.com), o autor resgata Platão, para quem o conhecimento exige que se habite os problemas, que neles se passeie com desenvoltura antes de resolvê-los. Na mesma ocasião, Gros cede ao célebre exercício estoico da “precisão da urgência”: o que faria se tivesse apenas duas semanas de vida? “Uma imensa caminhada”, responde, sem hesitar.

Assim, na contramão da liturgia social e do jugo econômico que nos acachapam, surge o fôlego subversivo de Gros, ar puro que encoraja à evasão. Não é preciso ir muito longe para caminhar, ou para viver de outro modo. Basta valorar cada gesto pelo que custa em “instantes de vida pura”; familiarizar-se com as verdadeiras paisagens, e não se contentar com suas representações. Enfim, ao mesmo tempo e sem pressa, caminhemos mais e pensemos melhor.
Livro de Frédéric Gros (Caminhar, uma Filosofia, em tradução literal) tem publicação no Brasil, pela editora paulista É Realizações, prevista para 2011.

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da USP, autora de As Assimetrias entre o Mercosul e a União Europeia (Manole, 2003)
DEISY VENTURA *
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